Crônica de um atendimento a um migrante durante a pandemia
“Alô! Oi! Já estou no rolê (1) !”. Ouço risos do outro lado do telefone. Penso “onde estaria?”, mas respondo “e você lá sabe o que é rolê?!”. Ouço risos
Tenho a impressão de que o tempo é outro. Estamos ao telefone: eu, de um lado da linha, de um lado da cidade, de um lado social; ele, do outro lado da linha, do outro lado da cidade, do outro lado social.
O que criamos é um espaço onde nos encontramos. Que lugar é esse?
Ele responde “tô andando, tô andando aqui no bairro, vendo lojas, vendo roupas, tô no rolê.”
Sim, ele está no rolê dele e está me levando. Estamos juntos num rolê telefônico.
Enquanto fala de forma pausada, ritmada e cômica, eu escuto. Rimos juntos. É um convite: “esteja comigo”. Esquisito pensar que se trata de um convite.
Ele poderia ter deixado o telefone no bolso, como, aliás, já fez algumas vezes. Poderia não ter escutado o telefone tocar, como também já aconteceu. Mas estamos aqui (onde será?) caminhando juntos.
Vai me contando como são as camisetas, como está a região, uma região central de comércio. Passa por uma loja onde alguém grita no alto falante: “entrem, entrem, venham, aqui tem!”. Não o ouço. “Ah, sim! Tô passando por uma loja e tem um cara gritando”. Ele não desliga. Nem eu.
O que nos liga? Que amalgama é esse? De onde será que veio? Algo veio de algum lugar ou foi construído? Só pode ser encontrado por ter sido criado. Rimos.
Ele continua. Fala em sua língua com outra pessoa. Somos de países diferentes e eu não sei a língua dele. Ele aprende. Eu aprendo. Nós aprendemos. Aprendemos juntos ou será um intercâmbio? Intercâmbio não é aprendizagem? Rimos.
Enquanto o ouço falar com outra pessoa (não entendo, é uma fala rápida), ele caminha. Como eu sei? Ele está em movimento e vai me contando. Estamos andando juntos? O que é estar junto sem estar junto fisicamente? Rimos.
Ele continua sua caminhada. Vai descrevendo o caminho, o que vê e o que não vê. Diz sentir saudade, algumas vezes se desespera. Estou do outro lado, mas seguimos juntos.
Do lado de cá ouço os mais variados sons, mas um me chama a atenção. Fico por alguns segundos ouvindo pássaros cantarem. Durante a caminhada ouço os pássaros cantarem. Falo sobre ditados populares e rimos cada vez que uma gíria nova aparece.
Aprender a linguagem não é o mesmo que apreender.
Aprender seria o bem usar. Apreender seria usar bem.
Ele vai caminhando e fazendo bom uso das palavras que aprende. Rimos.
Mas há momentos de muita tensão.
O ar muda. Ele pergunta para mim se eu o estou acompanhando. Respondo que sim, estou com ele nessa caminhada
Falo “amanhã será primeiro de outubro” e ele responde “pensei que fosse estar “morto”.Não rimos.
…
Em alguns momentos ele se viu diante de eminentes mortes. Fraturas da sociedade, o mundo e seus colapsos sociais tão expostos durante essa pandemia.
Lembrei de Belchior e Emicida (2) . Dois homens, assim como ele, cantando “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro
Ele não morreu. Segue vivendo. Vamos caminhar juntos até onde for possível.
1 Gíria comumente utilizada na cidade de São Paulo que significa “dar uma volta, dar um passeio”Falo “amanhã será primeiro de outubro” e ele responde “pensei que fosse estar “morto”
2 Antônio Carlos Gomes Belchior, conhecido como Belchior, foi um importante cantor e compositor brasileiro. Em 1976 lançou a música Sujeito de Sorte cujo trecho da música encontra-se no texto. O mesmo trecho foi utilizado pelo >Emicida (Leandro Roque de Oliveira) em sua música AmarElo, cujo álbum, 2019, leva o mesmo título. Ambas as letras falam de um presente/passado de lutas, mas, também, de um horizonte de expectativas ancorado na esperança.